segunda-feira, agosto 31, 2009

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O verniz da palavra
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Encontrei uma foto tua. Estava desbotada como aquela blusa antiga que não visto mais e que acabei dando. Por trás das cores pálidas, ainda consegui reparar nuns contornos do teu rosto, esboçados timidamente na imagem opaca. Aquela curva do lado direito da boca, quando reprimia o sorriso... Todo o teu rosto tinha ares de seriedade, mas eu a amava. Engraçado me deparar contigo assim... sem desejo por dentro. E ver esta fotografia me trouxe uma mista sensação, porque sobre a imagem familiar contemplo uma outra que aparece, em relevo, sobre aquela primeira. Duas coexistindo, mas para contrastar. De modo que a segunda se colou por cima da outra, tapando a antiga visão que fazia de ti. E foi nisso em que se tornou todo aquele sonho que me perseguia por onde fosse.
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Tu te transformaste numa espécie de peça arqueológica sem qualquer cor, mas que sou obrigada a manter no museu da memória, porque existiu por tempo demais para conseguir deitá-la fora de mim. Estás lá atrás, lá embaixo e, por algum motivo, hoje veio à tona como vêm os lixos guardados no fundo do mar, e que a maré alta faz emergirem, por vezes expulsando-os de si. Ou os levando depois para um lugar mais fundo e invisível ainda.
Estás turvo, sem cor, e estas palavras que escrevo parece que te deram um instante de existência, uma pequenina pincelada de verniz naquele canto da boca, mas que logo eu descorei, apagando como quem sopra, sem maiores esforços, um pequeno lume.

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